"O Papa Francisco, já deu mostras de que procura abordar os ateus de
forma respeitosa e sem um discurso de oposição"
Encerrou ontem (30), no
Vaticano, centro espiritual e político da Igreja Católica, um evento inusitado,
se considerarmos seus princípios. Trata-se da “Understanding Unbelief”
(Entendendo Incredulidade), apresentada como a maior conferência mundial sobre
ateísmo.
© Edison Veiga O
Vaticano receberá nesta semana o mais evento sobre ateísmo do mundo
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O programa, financiado pela
Fundação John Templeton, foi organizado por quatro instituições acadêmicas,
todas do Reino Unido. Na coordenação, a Universidade de Kent com a colaboração
das universidades Conventry, Queen's e de Saint Mary.
"Este evento não se
realizaria no Vaticano se não fosse por uma efeméride: trata-se do 50º aniversário de uma conferência semelhante realizada no Vaticano", afirmou
à BBC News Brasil o antropólogo Jonathan Lanman, diretor do Instituto de
Cognição e Cultura e professor da Universidade Queen's Belfast, um dos
organizadores do evento.
"Quantas vezes vemos o escândalo das pessoas que passam o dia na igreja e depois vivem a odiar ou a falar mal dos outros", afirmou ele.
O relatório, publicado nesta terça (28), trouxe oito pontos-chave para entender o fenômeno da não-crença no mundo:
Pontos curiosos
Ele contou que um dos
pesquisadores entrou em contato com o Vaticano e então "eles concordaram
em revisitar os temas da 'incredulidade'".
A conferência de 1969, a
primeira do gênero sobre o tema, ocorreu como consequência da abertura
provocada pelo Concílio Vaticano II, ocorrido de 1962 a 1965. O Papa Paulo VI (1897-1978) era um entusiasta do diálogo com outros cristãos, judeus e adeptos
de outras religiões. E também criou um secretariado próprio para ouvir a quem
chamava de "descrentes" - segundo suas palavras, o ateísmo era
"um dos assuntos mais sérios de nosso tempo".
O Papa Francisco, que comanda
a Igreja Católica desde 2013, já deu mostras de que procura abordar os ateus de
forma respeitosa e sem um discurso de oposição.
No início deste ano, por
exemplo, ele disse que é melhor viver como ateu do que ir à missa e nutrir
ódio pelos outros.
O papa
Francisco, que comanda a Igreja Católica desde 2013, já deu mostras de que
encara o ateísmo com naturalidade
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"Quantas vezes vemos o escândalo das pessoas que passam o dia na igreja e depois vivem a odiar ou a falar mal dos outros", afirmou ele.
"Vive como um ateu. Mas
se vais à igreja, então vive como filho, como irmão, dá um verdadeiro
exemplo."
O evento que começou na terça-feira contou com painéis que debateram o que leva pessoas a crerem e o que leva
pessoas a não crerem em Deus. Participam maioritariamente pesquisadores
acadêmicos interessados no tema, como sociólogos, antropólogos, teólogos e
filósofos - mas religiosos também são bem-vindos.
Em outubro de 2018, ele havia
condenado publicamente o fato de muitos católicos lavarem dinheiro sujo,
explorarem seus funcionários e cometerem delitos. "Há muitos católicos que
são assim e eles causam escândalos", disse o pontífice. "Quantas
vezes todos ouvimos pessoas dizerem "se esta pessoa é católica, é melhor ser
ateu"?".
O evento desta semana teve a
chancela do Pontifício Conselho para a Cultura, dicastério criado em 1982 pelo Papa João Paulo II (1920-2005).
Pesquisa
Há 50 anos, a primeira
conferência foi, segundo o sociólogo Rocco Caporale (1927-2008), que escreveu
um livro sobre ela ('The Culture of Unbelief: Studies and Proceedings From the
First International Symposium on Belief Held at Rome'), uma primeira
oportunidade para que a Igreja pudesse debater várias questões da "cultura
da não-crença" e sobre como estudá-la.
Caporale relata que uma das
principais percepções dos participantes do simpósio de 1969 foi a de que
"o crer e o não crer são uma completa terra incógnita".
Mas dessa vez, os
pesquisadores contaram com os dados de um estudo realizado pelas
universidades britânicas de Kent, Conventry, Queen's e Saint Mary.
Trata-se de uma pesquisa
conduzida em seis países sobre o que é ser ateu hoje. No total, foram
entrevistadas 6,6 mil pessoas - seguindo criteriosa amostragem científica - do
Brasil, Estados Unidos, Reino Unido, China, Japão e Dinamarca.
© Christina Stephens Um dos
participantes da pesquisa, morador dos EUA, entrevistado por Jonathan Lanman.
Ele é ateu e foi fotografado em uma igreja abandonada em St. Louis, Missouri.
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O relatório, publicado nesta terça (28), trouxe oito pontos-chave para entender o fenômeno da não-crença no mundo:
1. Ateus - aqueles que não
acreditam em Deus - e agnósticos - os que não sabem se existe Deus ou não, mas
não acreditam que haja uma maneira descobrir - não são homogêneos. Eles
aparecem em grupos diferentes nos países pesquisados. "Por conseguinte, há
muitas maneiras de ser incrédulo", pontua o documento.
2. Em todos os seis países, a
maioria dos que não acreditam em Deus se identifica como "sem
religião".
3. Na hora de se
auto rotularem, os incrédulos que preferem ser chamados de "ateu" ou
"agnóstico" não são a maioria. Muitos classificam-se como
"humanistas", "pensadores livres", "céticos" ou
"seculares".
4. Os ateus do Brasil e da
China são os menos convencidos de que sua crença sobre a não-existência de Deus
está correta.
5. Não crer em Deus não
significa necessariamente não acreditar em outros fenômenos sobrenaturais,
ainda que os ateus sejam mais céticos em relação a estes do que as populações
gerais.
6. Entre os ateus, o
percentual de pessoas que acham que o universo é "em última instância, sem
sentido" é maior do que no restante da população. Mas, ainda assim, em
número muito inferior ao de metade dos pertencentes ao grupo.
7. Quando confrontados com
questões relacionadas a, segundo o relatório, "valores morais objetivos,
dignidade humana e direitos correlatos, além do valor profundo da
natureza", as posições dos ateus são semelhantes ao do restante da
população.
8. Por fim, quando perguntados
sobre quais são os valores mais importantes da vida, houve uma
"concordância extraordinariamente alta entre incrédulos e populações
gerais", apontou o levantamento. "Família" e
"liberdade" foram muito bem citados por todos, além de
"compaixão", "verdade", "natureza" e
"ciência".
© Edison Veiga Um jardim
no Vaticano, onde aconteceu o maior evento sobre ateísmo
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Pontos curiosos
Da mesma maneira que nem todos
os que se descrevem como "sem religião" são ateus - muitos cultivam
uma espiritualidade própria - a pesquisa mostrou que nem todos os ateus são
"sem religião". No caso do Brasil, por exemplo, 73% dos incrédulos se
identificam como "sem religião", enquanto 18% se dizem cristãos. Na
Dinamarca, 63% dos ateus se dizem "sem religião" - 28% são cristãos.
A explicação para isso pode
ser por conta da tradição familiar. Com exceção dos chineses e dos japoneses, a
maioria dos ateus entrevistados disseram que romperam uma religião de família -
é o caso de 85% dos incrédulos brasileiros e 74% dos norte-americanos, por
exemplo. Em todos os países ouvidos, a grande maioria dos ateus veio de
famílias cristãs (79% dos brasileiros, 63% dos norte-americanos, 60% dos
dinamarqueses).
A questão dos rótulos também
traz variações - muitas vezes motivadas por receio de preconceitos. Entre os
que "não sabem se Deus existe" - tecnicamente agnósticos, portanto -,
8% dos brasileiros se autodefinem como ateus e a maioria, 27%, prefere ser
chamada de agnóstica; seguida de não-religiosa (16%), espiritual mas
não-religiosa (13%), racionalista (9%) e cética (8%).
Para os chineses desse grupo,
20% se dizem ateus e 18% racionalistas. Japoneses, britânicos e dinamarqueses
preferem ser classificados como "não-religiosos" (34% e 27% e 17%,
respectivamente) e norte-americanos se definem como "agnósticos"
(26%).
Já no grupo dos que afirmam
que "Deus não existe" - tecnicamente ateus - 30% dos brasileiros se
autodenominam ateus, 14% sem religião. Situação semelhante aparece na pesquisa
realizada com norte-americanos - 39% assumem-se ateus. E entre os chineses, há
um equilíbrio entre os que preferem ser chamados de racionalistas, ateus e
livres-pensadores (respectivamente com 22%, 21% e 19%). Dinamarqueses,
britânicos e japoneses preferem ser classificados como sem religião (36%, 35% e
31%).
A crença na ciência como o
melhor modelo para atingir o conhecimento apareceu como homogênea entre crentes
e incrédulos em todos os países aferidos, exceto Brasil e Estados Unidos. No
caso brasileiro, os métodos científicos são considerados o melhor caminho para
71% dos não-crentes - contra 43% da população em geral. Entre os
norte-americanos, o número é de 70% entre os incrédulos e despenca para apenas
33% da população em geral.
"Essas descobertas
mostram de uma vez por todas que a imagem pública do ateu é, na melhor das
hipóteses, uma simplificação. E, na pior das hipóteses, uma caricatura
bruta", ressalta Lois Lee, pesquisadora de estudos religiosos da
Universidade de Kent e autora dos livros Recognizing the Non-religious:
Reimagining the Secular (Reconhecendo o Não-religioso: Reimaginando o
Secular, em tradução livre) e The Oxford Dictionary of Atheism (O
Dicionário Oxford de Ateísmo).
"Em vez de confiar em
suposições sobre o que significa ser ateu, podemos agora trabalhar com uma
compreensão real das diferentes visões de mundo que a população ateísta inclui.
As implicações para a política pública e social são substanciais."
"Nossos dados vão de
encontro a estereótipos comuns sobre os incrédulos", afirma Lanman.
"Uma visão comum é que os incrédulos não teriam um senso de moralidade e
propósito objetivos, nutrindo um conjunto de valores muito diferente do
restante da população. Nossa pesquisa mostra que nada disso é verdade. Em um
tempo em que as sociedades parecem estar cada vez mais polarizadas, tem sido
interessante e encorajador ver que uma das supostas grandes divisões na vida
humana - crentes vs. não-crentes - pode não ser tão grande assim."
Fonte: BBC News
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